Convido-vos a fazer comigo uma viagem no tempo, usando a vossa imaginação.
Imaginem que amanhã, quando chegarem à escola, as raparigas vão para um lado e os rapazes para o outro. Metade da escola será para turmas só de rapazes e a outra metade para turmas só de raparigas. O recreio ficará também dividido em dois. Uma parte, a maior, ficará para os rapazes, a outra para as raparigas. Nem rapazes nem raparigas se poderão aproximar do muro que os separa ou serão castigados severamente.
Todos terão de vir vestidos com uma bata branca, impecavelmente limpa, sobre a roupa que usam. No entanto, as meninas não poderão vestir calças. Terão de vir de saia ou vestido até ao joelho e calçar meias até ao meio da perna. Os rapazes terão de usar o cabelo curto.
Dentro da sala, os alunos mais espertos sentar-se-ão à frente. Os que tiverem dificuldades de aprendizagem ficarão ao fundo.
A primeira coisa a fazer quando entrarem na sala será rezar um Pai-Nosso ou uma Ave-maria. Em certos dias, cantar-se-á o Hino Nacional, de pé e em sentido.
O professor terá, para além dos seus utensílios habituais, mais dois: uma longa cana-da-índia (ou uma vara de madeira) e uma régua em forma de «chupa-chupa», com cinco furos na parte redonda. Sabem para que servem? Para vos castigar.
Sempre que falarem sem autorização, ou não responderem acertadamente a uma pergunta, levarão uma canada na cabeça. Sempre que fizerem algo mal feito, um determinado número de reguadas. Por exemplo, num ditado, levarão uma reguada por cada erro de ortografia. Se o erro for na acentuação ou na pontuação, será uma reguada para cada três falhas.
Terão de saber dizer de cor os nomes de todos os rios, montanhas, distritos, capitais de distrito, caminhos-de-ferro, não só de Portugal Continental, mas também de Angola, Moçambique, Guiné e restantes colónias. Ah! E a tabuada, do 1 ao 10, os pronomes, os advérbios, os graus dos adjectivos, os reis das várias dinastias e respectivos cognomes, as conjugações verbais e outras coisas que tais.
Se alguém tiver mau aproveitamento nas provas (fichas e testes), o professor colocar-lhe-á umas orelhas de burro na cabeça e passeá-lo-á de sala em sala, para que se riam dele. Quem quer que passe por isso será, para sempre, o «burro».
Sempre que um adulto entrar na sala, deverão levantar-se e cumprimentá-lo. Aliás, todos os adultos deverão ser tratados por «senhor» ou «senhora» e terão de obedecer a qualquer ordem sua. Se não, lá vai reguada …ou pior.
Quando acabarem a Escola Primária, poderá acontecer uma de várias coisas. Se forem filhos de pais ricos, irão para o Liceu e daí para a Universidade. Se os vossos pais forem «remediados», poderão ingressar na Escola Comercial e Industrial da localidade mais próxima. Se os vossos pais forem mesmo pobres, irão aprender uma profissão numa oficina ou numa fábrica ou trabalhar no campo.
Aos 20 anos, terão de ir para a tropa, fazer a recruta. Alguns meses depois, mandar-vos-ão num barco ou num avião para África, combater «em defesa das Províncias Ultramarinas». Poderão voltar ou não. Se voltarem, poderão trazer o corpo inteiro ou não. A cabeça de certeza que não virá a funcionar bem. Terão pesadelos todas as noites, durante muitos anos.
Mas o pior pesadelo será o vosso dia-a-dia…
Se forem na rua com a vossa namorada e vos der a vontade de a beijar, se o fizerem em público, serão ambos presos e maltratados.
Se falarem mal do governo, se possuírem livros proibidos, se escreverem coisas «inconvenientes» no jornal da terra, se pertencerem a um partido, a polícia virá de noite a vossa casa e prender-vos-á. As coisas terríveis que vos farão na prisão, nem sequer as vou nomear…
Esta viagem no tempo já está a parecer um «filme de terror», não acham? Vamos, então, ficar por aqui.
Quero agora dizer-vos que este «filme de terror» vivi-o eu até aos 15 anos.
E viveu-o muita gente deste país. Muitos foram presos e torturados, alguns morreram até na prisão. Muitos não voltaram da guerra, outros voltaram estropiados ou amalucados. Muitos tiveram de emigrar para fugir à guerra ou à pobreza…
Acrescento apenas que, num belo dia de Abril de há 40 anos atrás, um punhado de militares portugueses, fartos de uma guerra inútil, decidiram que não queriam mais um país assim. Marcharam sobre Lisboa com os seus carros de combate e derrubaram o governo de então. O povo, quando percebeu o que se passava, veio para a rua, apoiar esses militares corajosos. E há uma coisa espantosa nas fotografias desses acontecimentos: nas armas dos soldados, há cravos; nas caras das pessoas, brilham os mais luminosos sorrisos.
Carlos Alberto Silva
22-04-2014